domingo, 29 de junho de 2008

Drogas

O consumo de drogas é um problema grave da sociedade atual por vários motivos. Um deles diz respeito à saúde: elas são capazes de levar um indivíduo a condições extremas quanto ao que o seu corpo consegue suportar. Qualquer substância, quando em concentrações longe das adequadas à atividade normal do corpo humano, provoca disfunções, geralmente, devidamente alertadas pelo sistema nervoso para que remediemos isso. No entanto, algumas substâncias atuam exatamente no sistema nervoso, provocando sensações prazerosas que, longe de nos alertar do perigo, nos estimulam a querer repetir a dose. Essas substâncias são chamadas drogas psicotrópicas.

As drogas são perigosas por duas características: a tolerância e a dependência. Tolerância é a resposta do corpo ao consumo prolongado da mesma droga, tentando chegar a um novo estado estacionário, de forma que a droga, ao invés de gerar boas sensações, apenas passa a ser necessária para se ter as sensações cotidianas (explicações mais detalhadas adiante). Dependência é um conjunto de sintomas que indica que um indivíduo continua a usar a droga mesmo que ela lhe cause problemas. Graças à primeira, é necessária uma dose cada vez maior da droga para se chegar aos efeitos desejados; graças à segunda, a pessoa perde a noção (ou não lhe dá ouvidos) dos problemas que advirão desse uso.


Os prejuízos das drogas ao corpo humano podem ser crônicos (surgem depois de um tempo de uso moderado) ou agudos (surgem depois de uma overdose). Ambos são potencialmente letais (obs.: overdose não é necessariamente letal no conceito, é apenas uma dose considerada excessiva) e são provocados porque, devido à tolerância e à dependência, o organismo precisa lidar com concentrações da droga (e de seus metabólitos) cada vez mais altas, e até consegue se ajustar, mas imperfeitamente, e os tecidos passam a ficar avariados e provocar reações em cadeia em que um atrapalha o funcionamento e a manutenção do outro. É importante salientar que a tolerância a uma droga geralmente varia para os seus vários efeitos: enquanto o cérebro já se ajustou aos efeitos da droga e o prazer diminuiu, o fígado e os rins, por exemplo, mal conseguem lidar com a dose atual, quem dirá com uma mais alta.


Vamos estudar aqui quatro drogas: cocaína, ecstasy, heroína e etanol, principalmente quanto aos seus efeitos agudos.

Cocaína


É um psicoestimulante (cujo efeito bioquímico induz à estimulação da mensagem na sinapse), atua principalmente nos neurônios pré-sinápticos que liberam dopamina, um neurotransmissor ligado ao prazer e à motivação para realizar atos importantes para a espécie, como comer e procriar. Atua ainda nos neurônios de serotonina e norepinefrina, sendo que esse último, devido ao seu amplo alcance no corpo via sistema nervoso autônomo, é responsável por grande parte dos efeitos colaterais do uso. A cocaína, ao chegar ao SN, se liga às proteínas recaptadoras desses neurotransmissores, impedindo que eles sejam reciclados dentro dos neurônios pré-sinápticos, amplificando muito suas mensagens e levando a sensações de euforia (dopamina), confiança (serotonina) e energia (norepinefrina).





Como efeitos mais perigosos da cocaína, temos o descontrole do SNPA, com hipertensão arterial, vasoconstrição generalizada e hiperfuncionamento do coração (batidas mais fortes e mais rápidas). Com a vasoconstrição das artérias coronárias, o coração corre grande risco de sofrer de uma isquemia e passar por fibrose. O mesmo problema ocorre no cérebro, onde as estruturas são frágeis e podem sofrer lesões tanto por hipóxia seguida de necrose quanto por microhemorragias internas.
A cocaína ainda possui duas características dignas de nota. Primeira: provoca tolerância se consumida continuamente em um momento, mas, se consumida a intervalos razoáveis (cerca de uma vez por dia), provoca sensibilização em lugar de tolerância (mais receptores pós-sinápticos são produzidos) por razão ainda obscura. A necessidade da droga para manter esses altos níveis de prazer justifica a fissura extremamente agressiva típica dos usuários dessa droga. Segunda: induz principalmente a dependência psíquica e não física. O único efeito real da abstinência é a vontade incontrolável de consumir a droga. Mas isso não significa que ela é mais fraca que as outras, muito pelo contrário: é a terceira droga mais viciante segundo pesquisa feita entre 90 e 92 nos EUA, perdendo apenas para heroína e tabaco (Anthony et al., 1994). Disso decorre um fato importante: o risco de overdose é proporcional ao prazer obtido. É que o prazer é tão maior quanto mais rápido a droga for absorvida, o que muda conforme a forma de consumo, e, quanto mais rápido for absorvida, mais a sua concentração no corpo aumenta repentinamente. Dentre as formas de consumo, há a mascada (a droga é absorvida pela mucosa bucal), a cheirada (absorvida pela mucosa nasal), a injeção intravenosa e o fumo do crack (cocaína em pedra e mais impura). Os dois últimos são os mais perigosos, já que a droga vai praticamente instantaneamente para o sangue e daí para o cérebro. No fumo, a droga é absorvida nos alvéolos pulmonares, passa para as veias pulmonares, daí para o coração e para o cérebro em segundos, sem ter tido tempo para se espalhar pela circulação sistêmica. No entanto, quanto mais rápido a droga é absorvida, também mais rápido é metabolizada e é maior a chance de o usuário usá-la de novo na mesma hora para o prazer não acabar. Assim, devido à tolerância a curto prazo já mencionada, há a tendência de se usar quantidades cada vez maiores, levando à overdose.





Gráfico que mostra a concentração, no sangue, da cocaína sob diversas formas de administração, e, em conseqüência, as velocidades de absorção e metabolização dela. IV significa intravenoso, smoked é a droga fumada em cachimbo, nasal é o pó cheirado e oral é a droga mascada.


Ecstasy ou MDMA (3,4-metilenodioximetanfetamina)

Foi popular nos anos 80 como a droga que trazia auto-conhecimento e chegou a ser recomendada por psicanalistas da época. Hoje, é consumida em “raves”, onde os jovens a ingerem em comprimidos de 50 a 150 mg cada ou na forma de pó misturado a bebidas. Atua da mesma forma que a cocaína, mas principalmente sobre a serotonina, neurotransmissor ligado à saciedade, a sentimentos como o amor, às percepções sensoriais e ao controle da musculatura lisa dos vasos sangüíneos. Os que a tomam podem sentir desde leveza ou náuseas a, em maiores doses, alucinações com sonhos inebriantes ou pesadelos terríveis. Por esses efeitos, é considerada uma droga tanto estimulante quanto alucinógena.

O principal perigo dela é a hipertermia que pode provocar. Devido à vasoconstrição periférica, o calor que a pessoa absorve do ambiente, onde todos dançam próximos e há pouca circulação de ar, não consegue sair do corpo. Este tenta reparar isso suando para que a evaporação da água sobre a superfície da pele o resfrie, o que leva à desidratação. Ainda assim, é grande o perigo de o organismo chegar a mais de 40 graus Celsius de hipertermia e danificar o SN, podendo morrer ali mesmo. Se isso não acontecer, há ainda o risco de sofrer rabdomiólise, ou seja, as proteínas dos músculos se quebram e são drenadas pelo sangue, podendo entupir os glomérulos dos rins e provocar insuficiência renal aguda (IRA), com anúria, acidose sangüínea e todos os efeitos decorrentes disso.

Ainda há relatos (e experiências com animais) que parecem afirmar ser o ecstasy uma droga neurotóxica ao uso prolongado devido a lesões celulares irreversíveis provocadas pelas altas concentrações de serotonina no cérebro. Com a morte neuronal, sérias psicoses podem acometer o indivíduo, como a síndrome do pânico.

Heroína


É uma droga depressora, ou seja, inibe a continuação das mensagens no SN. Existem neurotransmissores especializados em descontinuar mensagens, e eles servem para que elas não tenham uma dimensão maior do que a real, adequada para a situação. Dois exemplos desses neurotransmissores são o GABA (ácido gama-aminobutírico), um dos principais inibidores do SNC, e a endorfina, capaz de inibir, entre outros neurônios, os que lançam nas sinapses a substância P (no SNP, responsável pela sensação de dor), os que lançam o próprio GABA e os que lançam dopamina.


A heroína é um opiáceo (obs.: opiáceos são substâncias derivadas do ópio da papoula, potentes analgésicos, e opióides são substâncias sintéticas – à exceção das endorfinas, encefalinas e dinorfinas, opióides endógenos – que simulam os efeitos dos opiáceos por terem estruturas muito similares às suas; vários medicamentos são opióides) que pode ser injetado de forma intravenosa, fumado ou cheirado. Uma vez dentro do SNC (ultrapassa a barreira hemato-encefálica facilmente , bem como a barreira placentária, por ser muito solúvel em lipídeos), transforma-se em morfina, que é capaz de se ligar aos receptores de endorfina e inibir mensagens, mas, ao contrário da endorfina, a morfina não é facilmente reciclada pelo corpo e se mantém deprimindo continuamente o SN. Ela é capaz de deprimir os neurônios que passam informações de dor (substância P) e os outros neurônios inibitórios (GABA), mas não os do prazer (dopamina). Sem o GABA para manter as concentrações de dopamina aceitáveis, os níveis dessa no cérebro aumentam muito e daí vem a sensação de prazer. No entanto, ainda que com doses pequenas, já se percebe um dos efeitos mais característicos do uso de heroína: a depressão dos neurônios que controlam a respiração, principalmente os que checam o nível sangüíneo de bicarbonato, e não só o ato de respirar se torna mais difícil como o usuário não dá pela sua falta. Com uma overdose (freqüentemente alcançada quando o usuário se administra uma dose inesperadamente mais pura, logo, mais concentrada), ele pode morrer em minutos por parada respiratória e hipóxia. Devemos lembrar ainda que é uma droga com grande chance de provocar malformações no feto de uma grávida viciada.



Gráfico que mostra a interação do usuário com a droga, não em concentração sangüínea, mas, qualitativamente, em estado psicológico ("depressivo", "normal" e "eufórico"). Observe como a heroína provoca estados alternados e como os usuários tendem a usar mais droga para voltar ao estado eufórico (setas pretas) e como a metadona faz efeito mesmo com longo intervalo entre as doses.

A técnica da desintoxicação é muito usada para combater o vício. Trata-se de substituir a heroína por um opióide de ação longa ou duradoura, como a metadona, capaz de satisfazer a fissura e cujo período de síndrome de abstinência é maior, porém mais suave. Opióides de ação longa normalmente são usados como analgésicos de doenças crônicas enquanto opióides de ação curta, cujos efeitos são sentidos mais rapidamente, são usados em situações pontuais de grande dor, como períodos de pós-operatório. É extremamente baixa a ocorrência de vício entre pessoas que tomam opióides sob prescrição médica, mas não é tão incomum que médicos e outros profissionais da saúde que não passam por supervisão constante se viciem em remédios com tais substâncias.

Etanol

O etanol, ou simplesmente álcool como é chamado, tem basicamente dois mecanismos para exercer sua atividade depressora: ele se mistura às membranas neuronais, por ser parcialmente polar, e com isso dificulta a passagem do impulso elétrico por bombeamento de íons (também atravessa fácil a barreira hemato-encefálica e está relacionado à incidência de bebês nascidos com retardo mental); e se liga aos receptores GABAérgicos em um sítio periférico, mudando a estrutura do receptor e aumentando a sua afinidade pelo GABA, que se mantém ligado por mais tempo, permite a passagem de mais íons cloreto e despolariza o neurônio. Com isso, sua atividade inibitória fica superestimulada e o SN fica deprimido. O etanol ainda reduz o efeito excitatório do glutamato nos receptores NMDA (potencializa o processo depressor) e aumenta a liberação de dopamina de uma forma ainda pouco conhecida (induz ao prazer). Os efeitos contrários, esperados na síndrome de abstinência, explicariam a irritabilidade, a excitabilidade e os tremores característicos desse período.


Em overdose, o álcool provoca uma série de problemas. Além de aumentar muito as concentrações do seu metabólito tóxico, o acetaldeído, induz à hipoglicemia se largamente ingerido sem alimentação que o acompanhe, pois mantém atuando na sua própria via o NAD+ hepático, que não será usado tão cedo na via gluconeogênica (sua versão oxidada seria usada nas conversões de lactato a piruvato e malato a oxaloacetato); pode levar à descompensação de eletrólitos e ao choque devido ao volume de urina produzido (tanto para tentar desintoxicar o organismo quanto porque o hipotálamo foi também deprimido e não libera vasopressina no sangue); e, por fim, é capaz de deprimir o SN quase como um todo, levando ao coma e à parada respiratória, daí à morte.


Referências (as três primeiras têm simulações pra quem não entendeu muito bem, acessem!)

http://thebrain.mcgill.ca/flash/index_i.html (dentro de Pleasure and Pain>Pleasure and Drugs)

http://science.nhmccd.edu/biol/ap1int.htm (dentro de Drugs and Neurotransmitters)

http://www.jellinek.nl/brain/index.html

http://www.sbbq.org.br/revista/mtdidaticos.php (dentro de "Drogas e Bioquímica: Qual é o barato?")

http://www.drugabuse.gov/NIDAHome.html

http://www.uniad.org.br/bloguniad/DEFAULT.ASP?IDPOST=693

Goodman & Gilman, The Pharmacological Basis of Therapeutics, 11ª edição, 2006.

Um comentário:

Ciência Brasil disse...

tem uma figura que não aparece

e mais

cuidado com os links que não funcionam

abraços a todos

MHL